Em 1960, a arqueóloga inglesa Kathyn Kenyon descobriu centenas de estatuetas femininas quebradas em uma caverna perto do templo de Salomão em Jerusalém, para vários estudiosos essa descoberta sinalizou a existência do templo, para outros determinou o fim dos cultos pagãos pelo rei Josias, o qual ordenou a destruição de todos os vasos feitos para Baal e Asherah (Discovery, 1993).
Portanto, Asherah quase sempre foi adorada sob o corpo de uma árvore, seu culto era principalmente realizado ao redor de uma árvore natural ou estilizada, de um poste sagrado que podia estar ao lado de um altar seu ou de outra divindade.
“Porém, seu culto foi realizado, de preferência, debaixo de uma árvore natural, nos chamados 'lugares altos', santuários ao ar vivo no topo das colinas e montanhas. Na maioria do tempo, uma imagem ou símbolo de Asherah estava também presente dentro do próprio templo de Jerusalém" (Ottermann, 2005, p. 49).
O culto a Asherah foi muito popular em Israel e Judá. O rei Asa (912-871 a.E.C), que ficou no poder durante 41 anos em Judá, empreendeu uma restauração no culto a Yahweh e “chegou a retirar de sua mãe a dignidade de Grande Dama, porque ela fizera um ídolo para Aserá; Asa quebrou o ídolo e queimou-o no vale do Cedron” (1Rs 15,13; cf. 2Cr 15,16). O ídolo remete na palavra hebraica mifleset, a algum objeto de culto, provavelmente de madeira. É interessante perceber que o culto se dá no palácio, em ambiente oficial (Croatto, 2001, p. 40-41). Já na passagem de 1Rs 16,33 “Acab erigiu também um poste sagrado...” demonstrando que Asherah também foi adorada em Israel.
"(... os israelitas q voltaram do exilio da babilonia), os expoentes deste grupo conseguiram banir de Judá quase completamente o culto às deusas dentro de um século e de apagar, o máximo possível, as memórias dele. Não é por acaso que o culto clandestino à deusa acontece no contexto de proibições misóginas e xenófobas de casamentos mistos. Todas as tentativas que seguem, de integrar a deusa pelo menos na linguagem teológica, são tentativas assentadas dentro do sistema monoteísta” (Schroer, 1995, p. 40).
Há uma preocupação dos redatores bíblicos de excluir qualquer suspeita da Deusa Asherah ao lado de Yahweh, como sua consorte. No entanto, as inúmeras citações sobre Asherah demonstram seu peso no contexto religioso e isso fez dela uma grande ameaça ao monoteísmo javista em ascensão.
A reforma religiosa de Ezequias era baseada nas seguintes medidas: no combate a idolatria, na centralização do culto a Yahweh em Jerusalém e no cumprimento dos mandamentos. Tais medidas podem ter sido fundamentadas no documento trazido do Norte (Dt 12-26), que foi adaptado à reforma em Judá. Josias retoma 100 anos mais tarde este documento para empreender sua reforma religiosa e política (Gass, 2005, p. 78-83).
Os redatores bíblicos tinham uma intenção nítida, contar a história a partir de Yahweh, único Deus, de tal forma que Asherah de consorte passe a ser sua rival, ou seja, a elite de escritores bíblicos tinham uma idéia clara daquilo que Deus deveria ser: único e masculino, Yahweh, negando assim toda a realidade politeísta em Israel.
A proibição da Deusa Asherah é fruto de um dado momento histórico de elaboração e ascensão do monoteísmo javista, onde a identidade judaica, após a drástica experiência do exílio babilônico e na tentativa de reorganização da nação, passa a se constituir em torno de três pilares: um só Deus, um só Povo e uma só Lei.
Podemos claramente perceber que a elaboração e instituição do monoteísmo não se deu de forma democrática e muito menos pacífica. A partir de um contexto politeísta, a centralidade em Yahweh é um processo violento, de destruição da cultura religiosa do outro e da outra, de proibição do diferente, demonizando-o e tornando-o uma ameaça. Um processo nítido de intolerância religiosa.
A supressão do culto e da imagem da Deusa Asherah traz consigo conseqüências profundas para as relações entre os gêneros, afetando em especial aos corpos das mulheres, que tinham na Deusa uma possibilidade de representação do feminino no sagrado.
A religião judaica vai se constituindo em torno de um único Deus masculino, legitimando historicamente uma sociedade patriarcal. Este poder divino imaginado somente como Deus afetou as mulheres, as crianças, a natureza, pois quase sempre partiu de um pressuposto de dominação, opressão e hierarquização das relações, tanto humanas como ecológicas.
Afirmar Asherah como Deusa é polêmico, mas necessário à religião e à pesquisa bíblica. Dar voz a uma época em que Deuses e Deusas eram adorados, em que o próprio Yahweh foi adorado ao lado de Asherah, nos impulsiona a re-pensar não só as relações pré-estabelecidas entre homens e mulheres, bem como, a própria representação do sagrado estabelecida.
Re-imaginar o sagrado como Deusa é re-imaginar as relações de poder, não numa tentativa de apagar a presença de Deus e sim de dar espaço ao feminino no sagrado, novamente o feminino não como um atributo do Deus masculino, mas como Deusa. Esta talvez seja uma grande contribuição da reflexão feminista, que nos desloca e nos provoca a re-imaginar o sagrado, como possibilidade de re-imaginar a sociedade e as estruturas cristalizadas secularmente.
Referências
BIBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2003.
CHRIST, Carol P. Re-imaginando o divino no mundo como ela que muda. Tradução de Monika Ottermann. Mandrágora. São Paulo, ano XI, nº 11, p. 16-28, 2005.
CROATTO, S. J. A deusa Aserá no antigo Israel. A contribuição epigráfica da arqueologia. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, nº 38, p. 32-44, 2001.
CRÜSEMANN, Frank. Elias e o surgimento do monoteísmo no Antigo Israel. Fragmentos de Cultura. Goiânia, V. 11, nº 5, p.779-790, 2001.
DISCOVERY CHANNEL. The Forbidden Goddess: Archaeology on the Learning Channel. Degravação de Ildo Bohn Gass. Documentário, 28 min, 1993.
FIORENZA, Elisabeth S. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992. GASS, Ildo Bohn (Org.). Reino Dividido. 2 ed. São Leopoldo: Cebi; São Paulo: Paulus, V. 4, Coleção Uma Introdução à Bíblia, 2005.
HESTRIN, Ruth. Understanding Asherah, exploring semitic iconography. Biblical Archaeology Review, p. 50-58, 1991.
NEUENFELDT, Elaine. Yahweh- Deus único?, evidências arqueológicas de cultos e rituais à divindades femininas e familiares no antigo Israel. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso de Teologia) – IEPG/EST, São Leopoldo, 1999.
OTTERMANN, Monika. Vida e prazer em abundância: A Deusa Árvore. Mandrágora. São Paulo, ano XI, nº 11, p. 40-56, 2005.
______. A Iconografia da Deusa em Canaã e Israel/Judá nas Idades do Bronze ao Ferro. Ensaio para a disciplina de Colóquio de Literatura e Religião no Mundo da Bíblia, UMESP, 2004.
REIMER, Haroldo. Sobre os inícios do monoteísmo no Antigo Israel. Fragmentos de Cultura. Goiânia, V 13, nº 5, p. 967-987, 2003.______. A serpente e o monoteísmo. Hermenêuticas Bíblicas: Contribuições ao I Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: UCG, p.115-128, 2006.
RUETHER, Rosemary Radford. Sexismo e religião: rumo a uma teologia feminista. Tradução de Walter Altmann e Luís M. Sander. São Leopoldo: Sinodal, 1993.SCHROER, Silvia. A Caminho para uma reconstrução feminista da História de Israel. Tradução de Monika Ottermann, (s.d.) 1995.
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